Convivendo com as perdas (Revisado) – Aroldo Escudeiro

Convivendo com as perdas
Aroldo Escudeiro / Psicólogo e Tanatólogo

A Tanatologia é uma ciência ainda muito recente.

O conceito de Robert Kastenbaum e Ruth Aisenberg é que a Tanatologia é a ciência que estuda os processos emocionais e psicológicos que envolvem as reações à perda, o luto e a morte. Existe também o conceito de Evaldo D’Assumpção de que a Tanatologia é a ciência que estuda a vida através da ótica da morte. Isso nos remete a Willian Dilthey, precursor da fenomenologia que nos diz “a vida é um valor, e é a morte quem ratifica esse valor, se não fora a morte, como poderíamos valorar a vida ?”

Portanto a Tanatologia se preocupa não só com a morte física mas, principalmente com as perdas.

O que observamos hoje no Brasil em relação à morte e a perda nas diversas especialidades, principalmente na área de saúde é que há grande maioria sente dificuldade no enfrentamento dessa questão.

A Tanatologia se apresenta como um instrumento para facilitar o manejo das situações que os profissionais vivenciam em sua rotina de trabalho, principalmente os que labutam em hospitais e centros de saúde.
Constatamos que no campo teórico existem muitos trabalhos publicados abordando a questão do manejo das situações de perda e de morte.
Robert Kastenbaum e Ruth Aisenberg se referem à dificuldade dos profissionais em seu livro Psicologia da Morte (1983). Averil Stedeford também se dedica à análise de como os profissionais se relacionam com a morte e as perdas em seu livro Encarando a Morte (1986). Nancy Koseki indica caminhos para os profissionais se relacionarem melhor com seus pacientes que estão morrendo e consigo mesmo sugerindo atividades para aliviar o sofrimento de quem lida com situações de morte e perda em seu artigo Programa de Cuidados Paliativos do CAISM, no livro Reflexões sobre a Vida e a Morte – Abordagem interdisciplinar do paciente terminal (2000).

Encontramos atualmente no Brasil inúmeras publicações a respeito do tema e constatamos o crescimento e interesse cada vez maior dos profissionais que trabalham com a morte e a perda, mas entendemos que se faz necessário à compreensão dos mais diversos aspectos desse tema tão difícil em suas mais variadas facetas, principalmente na questão das perdas.

Quando falamos em perdas nos remetemos diretamente à questão do apego. Dificilmente sentimos a falta de um objeto se não temos pelo menos uma proximidade com este, quer em forma de apego ou vínculo. É muito difícil para nós lidarmos com as perdas, pois faz parte da condição humana e da nossa educação a propensão a só querer ganhar.

Apesar dessa dificuldade sabemos que a vida é feita de perdas e ganhos e uma das maiores perdas que enfrentamos é a morte. Mesmo assim continuamos a insistir no caráter ocasional da morte. Como nos disse Freud “destituímos a morte do caráter de necessidade” e nos enganamos e vivemos como se não fossemos morrer, nem nós nem nossos entes queridos.

Durante a história humana, verificamos segundo Philippe Àries (1990) que nem sempre esse comportamento que verificamos hoje no homem ocidental se apresentou dessa forma. Àries pesquisou por mais de quinze anos o comportamento do homem ocidental e suas atitudes diante da morte registrando-os em seus livros: A história da morte no ocidente e O homem diante da morte.

Em seu trabalho, mostra as diferenças de atitudes do homem medieval, moderno, contemporâneo e o que existe de mais geral e mais comum no que concerne ao seu destino individual e coletivo. Verificamos no trabalho de Àries que nem sempre esse medo exagerado que sentimos hoje em relação a essa perda terrível – que é a morte – foi o mesmo que experimentamos em outras épocas. Nem sempre o homem se apavorou com a própria morte ou a morte de entes queridos e essa angústia que vive hoje faz parte de um comportamento peculiar à pós-modernidade.

Nos apegamos em demasia às coisas materiais, pensamos em ter cada vez mais e nos angustiamos com a possibilidade de perdê-las.

Sobre essa terrível angústia e terror da morte que nos acompanha hoje, Ernest Becker (1973) em seu trabalho contemplado com o prêmio Pulitzer da literatura francesa, o livro A Negação da Morte, nos mostra o que leva o homem a comportar-se de forma extrema e paradoxal.

O terror da morte seria, segundo Becker, a mãe de todas as angústias e ao mesmo tempo a mola mestra da atividade humana, influenciando tanto seu comportamento quanto a sua subjetividade. Os valores aos quais nos prendemos tornam-se inconsistentes quando pensamos na possibilidade da nossa impermanência. Costumamos resignificar idéias, conceitos e atitudes quando admitimos que em algum momento perderemos a oportunidade de estarmos no mundo com os outros e com nós mesmos.

Queremos fazer tudo que todos fazem, viver todas as experiências possíveis vividas por todos, pois, sabemos que a qualquer momento essas possibilidades tornar-se-ão impossibilidades. Ainda segundo Becker, a literatura sobre o terror que sentimos em relação à morte não aponta para uma única direção no que concerne à etiologia desse medo. Há o argumento que defende que o medo da morte não é algo natural e que não nascemos com ele.

Coloca o ônus da ansiedade na educação, o vê como algo criado pela sociedade, um “mecanismo de controle da cultura” (Moloney, in: Becker, 1973) ou uma ideologia (Marcuse, in: Becker, 1973) onde a sociedade utilizaria desse medo como um mecanismo de controle. A sociedade e em particular as religiões, no sentido das congregações, com suas próprias verdades impõem uma ideologia no intuito de subjugar e manipular. O argumento da “mente sadia” propõe que uma criança bem tratada pela mãe e com experiências positivas, que levam a um sentimento de segurança e proteção não estaria sujeita a temores mórbidos.

Já os defensores do argumento da “mentalidade mórbida” colocam que o terror da morte é natural e está presente em todos nós. Ninguém estaria imune a ele e esse medo influenciaria todos os nossos outros temores. Por trás das fobias, depressões e pânicos estaria escondido o terror da morte. Quando falamos que não temos medo da morte essa afirmação é puramente intelectual. Mesmo assim, sabemos que se esse medo permanecer obsessivamente em nosso pensamento não funcionaríamos psiquicamente.

Como disse William James, esse terror é o “verme que está no âmago das pretensões humanas à felicidade”. Mas Max Scheler (in: Becker, 1973) também fala que temos a intuição desse “verme no âmago” do que nos fala James. Mas afinal, precisamos nos defender dessa angústia e como nos mostra J. Saul (in Becker, 1973), temos aquilo que chamou de “Sustentação Interna”, a capacidade de funcionarmos com confiança, vivendo o momento e ignorando que numa hora qualquer tudo deixará de existir para nós, pois, morrer é “um dado estruturante da sociedade e da subjetividade” como nos disse Heidegger (1927) em seu Ser e Tempo.

Portanto precisamos morrer, até porque assim iremos ajudar a perpetuar a espécie que se nutre da morte de seus indivíduos para se preservar. (Morin, 1970).

MORTE E DESENVOLVIMENTO HUMANO

Durante a nossa primeira infância não apreendemos nem o sentido da vida nem o sentido da morte. Na segunda infância começamos a personificar a morte como algo externo a nós e por volta dos oito a nove anos começamos a compreender que não somos imortais e que a morte vem para todos e que esse fato é irreversível. Na adolescência apesar de termos a compreensão intelectual do fato ainda não temos maturidade emocional e nos comportamos como “heróis” que sempre vencem, e nunca morrem.

No começo da idade adulta ainda vislumbramos a morte muito distante de nós, de nossa família e amigos mais próximos. Temos muito que construir, não há espaço para interrupções em nossos planos. Já na meia-idade, começamos a encará-la de frente, não da mais para fugir. Já admitimos tanto intelectual, como emocional e existencialmente essa possibilidade e então nos deparamos com a nossa própria finitude. Através de nossas experiências de perdas vamos entrando no mundo real que contempla tanto a vida quanto a morte.

Perdemos nossos avós, pais, amigos, familiares e não podemos negar a realidade que se impõe à nossa vontade de permanecer. Os velhos em sua maioria e para a surpresa de muitos já não sentem o mesmo medo que sentimos nas fases anteriores do desenvolvimento. Apesar da finitude estar mais próxima e causar ansiedade, funciona também como uma preparação para o momento final. Ele já se realizou consigo e com o mundo, viveram as mais diversas experiências, fechou as Gestalten, completou a circularidade de que nos fala Heidegger (1927).

A maioria dos velhos vive e sente a proximidade da morte dessa maneira, mas existem aqueles que continuam com o mesmo temor das fases anteriores do desenvolvimento.

Em pesquisa realizada com 100 velhos relativamente doentes (Weisman, 1996) e 100 velhos relativamente saudáveis (Kastenbaum, 1983) encontrou-se a mesma resposta: 70% da população consultada não temia a morte como os indivíduos das fases anteriores. Isso nos remete ao sentido de “realização” para aqueles que conseguem se “livrar” dessa terrível angústia e viver a plenitude do ser.

APEGO, PERDA E LUTO.

A experiência da perda é um dos eventos mais estressantes que podemos viver. Todos nós temos a tendência a estabelecer laços afetivos com outras pessoas. Inicialmente nos apegamos à nossa mãe e isso acontece segundo Bowlby (1984) devido à necessidade que temos de segurança e proteção. Quando nosso objeto de apego está ausente ou há ameaça de perdê-lo sofremos forte reação emocional e nos sentimos perdidos. Ainda conforme Bowlby em sua teoria do apego quando somos ameaçados pela perda (separação) desse objeto reagimos de três maneiras.

A princípio protestamos, não admitimos a ausência do objeto amado, a seguir o nosso comportamento é de desespero, pois, não temos mais acesso a ele e não sabemos lidar com essa privação. Mas num terceiro momento nos defendemos e nos desapegamos, precisamos restabelecer a nossa homeostase e se não utilizarmos esse mecanismo de defesa estaremos sujeitos a sucumbir emocionalmente. Toda perda significativa pressupõe o luto, um processo que visa retirar a energia fixada no objeto perdido e redirecionada para outro objeto (Freud, 1917).

Essa desvinculação do objeto perdido nos ajuda a vencer as etapas do luto, pois se nos fixarmos na perda e no objeto perdido estaremos contribuindo para que o processo do luto se desenvolva de maneira patológica. O luto como processo pressupõe fases segundo Bowlby (1984). Logo após a perda entramos em um estado de torpor, sentimos aflição e há momentos em que negamos a realidade da perda, isso pode durar horas ou dias. Logo a seguir entramos na fase do “anseio e busca da figura perdida”. Sentimos a presença da pessoa que perdemos, temos a tendência em associar algum evento circunstancial à presença do morto, por exemplo, ouvir a voz deste nos chamando.

Sonhamos insistentemente com o morto, sentimos o seu cheiro, interpretamos qualquer sinal como a sua presença, isso pode durar meses ou anos. Mas a realidade se impõe ao nosso desejo e depois de diversas tentativas de recuperar a pessoa perdida em vão entramos na fase de desespero e nos desorganizamos. Nesse momento a raiva e a culpa se apresentam de forma mais intensa. Procuramos algo ou alguém para responsabilizar, nos sentimos impotentes e sabemos que nada mais poderá ser feito para recuperarmos aquele que perdemos.

Mas precisamos sobreviver e a vida nos impulsiona novamente para a homeostase, mas para que isso aconteça precisamos nos permitir viver a dor e a tristeza da perda. Cada um de nós vai processar essa experiência à sua maneira, mas precisamos dar vazão aos sentimentos que nos sufocam.
O luto pressupõe tarefas conforme nos aponta Worden (1998) em seu livro Terapia do Luto.

A primeira tarefa que precisamos realizar é a aceitação da realidade da perda, sem isso não poderemos prosseguir no processo. Após a aceitação dessa nova realidade em nossa vida precisamos trabalhar a dor que emerge da perda, e, quanto mais significativa essa perda mais sentimos dor. Se avançarmos na realização das tarefas do luto temos que nos acostumar com a falta da pessoa perdida no ambiente em que vivíamos com ela. É difícil entrar no quarto do filho e ver que ele nunca mais vai estar ali.

Mas a vida nos chama e precisamos reposicionar em termos emocionais a pessoa que perdemos. É hora de destinar um lugar adequado para o ente querido que não está mais aqui conosco, mas que poderá permanecer para sempre em nossas lembranças. Com isso nos damos o direito de nos abrirmos a novas experiências com outras pessoas e com o mundo. Mas há certos tipos de perdas que levam a um tipo especial de luto, por exemplo, o suicídio.

Nesse caso um alto grau de culpa e rejeição se estabelecerá. Pode vir o sentimento de que poderíamos ter feito algo para evitar o fato. Também sentimos raiva do morto por ter nos colocado em uma situação onde além de perdermos somos estigmatizados pela sociedade como alguém que não foi capaz de impedir o acontecimento.

O aborto é outro tipo de perda que indica um tipo de luto especial, primeiro porque é uma perda carregada de auto censura mesmo que tenha sido espontâneo. E se o aborto foi provocado há muito mais dificuldade de ser elaborado, pois está enquadrado entre as perdas socialmente negadas. Fica difícil para uma adolescente procurar ajuda para esse conflito, principalmente nos países em que o aborto é crime.

Outro tipo de perda de difícil resolução é a perda ambígua. Conforme (Walsh, 1998) a dificuldade em aceitar a realidade da perda e dar vazão ao processo do luto é a ausência do corpo do morto, nesse caso fica a sensação de que a qualquer momento a pessoa perdida poderá reaparecer. É muito difícil, por exemplo, para uma mulher que foi à praia com o marido e esse desaparece repentinamente no mar sem nunca mais retornar. O filho seqüestrado ou desaparecido leva a mãe à não se desligar mais do evento da perda e a esperança de reencontro poderá durar indefinidamente.

Outro tipo de perda que leva a um luto mais dificultoso é a perda por assassinato. Sabemos que se o assassino continua solto após cometer o crime e dificilmente a família ou o ente querido mais atingido conseguirá entrar no processo do luto enquanto o assassino não for apenado. As questões legais e a morosidade da justiça dificulta a entrada da pessoa no processo e o que se observa é um desejo de vingança ou justiça, que embotam outros sentimentos que deveriam emergir para facilitar o processo do luto.

É muito difícil para nós da sociedade ocidental lidarmos com as perdas até porque nos apegamos em demasia às coisas materiais e somos insistentemente estimulados para o consumismo deixando de lado valores outros que agregam bem-estar e satisfação.

Portanto se faz necessário que os profissionais se disponham mais a refletir e trabalhar as questões pertinentes à morte e a perda, pois com certeza isso facilitaria a sua prática e seria um grande ganho para a sua vida pessoal.

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