A cerimônia do adeus à vida (EUTANÁSIA, ORTOTANÁSIA OU AUTANÁSIA?)
por Evaldo D´Assumpção
Autanásia é o melhor caminho para a libertação e a paz do doente em fase terminal
O dia 9 de agosto deste ano ficará marcado pela publicação da Resolução 1.995 do Conselho Federal de Medicina (CFM) que, em seu artigo 1º diz: “(O CFM resolve) Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”.
Quando o CFM publicou a Resolução 1.805/2006, abordando essa questão, surgiram várias reações, especialmente da área jurídica, questionando a competência do CFM para legislar sobre matéria penal, que é exclusiva da União. Por força de uma liminar, a Resolução foi vetada pela Justiça, perdendo a sua eficácia. Felizmente, porém, a própria Justiça houve por bem revogá-la, restabelecendo os efeitos da Resolução, que inclusive faz parte do novo Código de Ética Médica.
Curiosamente, até o magistério da Igreja Católica, por vezes acusado de conservadorismo, manifestou-se a favor dessas medidas. Em nota divulgada no dia 3 de setembro, o Cardeal e Arcebispo de Aparecida, presidente da CNBB, D. Raymundo Damasceno diz: “Da forma que a resolução está colocada, a CNBB não é contra, enquanto se trata do uso de recursos extraordinários, complexos, que podem trazer mais sofrimento para o paciente, para a família; podem acarretar custos onerosos para a família do paciente, sem nenhuma esperança ou garantia de recuperação. Então, devem ser utilizados todos os recursos normais e naturais próprios para o tratamento de qualquer paciente”.
Tal conduta recebeu o nome oficial de “Ortotanásia”, palavra que vem do grego, onde o prefixo “orto” tem o significado de “certo, correto“ e “tánatos” refere-se à Thanatos, que na mitologia grega representa a morte. Contudo, discordo do termo porque o procedimento a que ele se refere, corresponde ao não prolongamento indevido do processo do morrer, à custa de medidas diagnósticas e terapêuticas excessivas, que nenhum benefício real irá proporcionar ao enfermo na fase terminal de sua doença, mas, pelo contrário, irão causar-lhe sofrimentos desnecessários, despesas às vezes exorbitantes para a família e para os planos de saúde. Enfim, um desperdício de tudo, sem qualquer benefício legítimo para ninguém, especialmente para o enfermo.
Chamar a isso de “ortotanásia” é pretender que a morte permitida será a “correta, a certa”. Pergunto como médico: será que temos suficiente conhecimento e autoridade para afirmar tal pretensa “correção”? Por isso mesmo, antes de se falar abertamente em ortotanásia, publiquei um artigo na edição de 20 de julho de 1991 do jornal Estado de Minas, intitulado: “Eutanásia ou Autanásia?” Nele propunha essa nomenclatura por haplologia de Autotanásia (Auto = Por si mesmo; Thanatos = Morte). Ou seja, deixar a morte ocorrer por si só, naturalmente, sem impedimentos artificiais e meramente protelatórios. Utilizo, pois e creio, que Autanásia é a palavra mais adequada e menos pretenciosa para definir o comportamento do médico que deixa as medidas curativas, por serem inúteis e assume as paliativas, que objetivam o cuidado compassivo com o enfermo, sem qualquer pretensão de ser “senhor da vida e da morte”. Quando se esgota a sua capacidade técnica de curar, assume inteiramente a compaixão para acolher e cuidar, até o último suspiro daquele que confiou em sua condição de Médico.
Por outro lado, é necessário afirmar a total diferença entre Eutanásia (Eu = bom) da Autanásia. Na primeira, o autor toma medidas objetivas para tirar a vida de uma pessoa que está em sofrimento intenso, ou até mesmo de enfermos portadores de doenças que poderão, num futuro próximo, causar-lhes eventuais sofrimentos. Portanto, é sem dúvida um homicídio, ainda que movido por supostas boas intenções. Por isso mesmo é crime e é uma conduta eticamente inaceitável. Na Autanásia (ou Ortotanásia), não se toma qualquer medida para tirar a vida de uma pessoa, mas se aceita a inexorabilidade do processo tanático que já teve o seu início e não tem retorno. Não como uma “derrota” do médico, mas seu humilde reconhecimento de que somos limitados e que não podemos sacrificar enfermos e familiares com falsas expectativas.
Uma última consideração refere-se aos familiares, que por vezes não admitem a morte de um ente querido, exigindo dos médicos até milagres para não deixar que ocorra o desenlace. E costumam clamar ao enfermo, às vezes em coma irreversível, em morte encefálica: “Você não pode morrer! Como vou viver sem você!”
Tais expressões, respeitada a dor diante da iminência da partida daquele paciente, podem também representar um apego desmedido às pessoas, por confundi-lo com amor. Quem ama verdadeiramente, é capaz de abrir mão de uma satisfação pessoal, pela felicidade da pessoa amada. Se ela já não mais tem condição de viver, se passa por sofrimentos incontroláveis, como se pode desejar o prolongamento daquela vida a qualquer preço?
Se pensarmos com prudência, humildade e compaixão, a AUTANÁSIA, em situações bem definidas, é o melhor caminho para a libertação e a paz do enfermo em fase terminal de sua doença.
*Evaldo D´Assumpção foi professor de Bioética e Biotanatologia na PUC-MG e na Pós-Graduação da Faculdade de Ciências Médicas de MG. É autor do livro “Sobre o viver e o morrer” (Ed. Vozes, 2011)