A morte de um filho na Teologia de Dostoiévski – Sonia Sirtoli Färber

A Morte de um filho na Teologia de Dostoiévski
Publicado no jornal “O Paraná” de 17/06/2009

Morte é sempre uma constatação do fracasso humano, do limite que lhe é imposto e, sendo intransponível, derruba todas as seguranças que os expedientes cotidianos dão. Não há como escapar da morte. Vencê-la, nunca; afastá-la… tenta-se. Das muitas formas de tentar driblar, senão a morte, ao menos sua lembrança, a mais comum é imaginar que só acontecerá este evento na velhice, ou, quando menos, na vida adulta, enquadrando assim, o seu desfecho para um tempo em que suas ambições já foram alcançadas e o desfrute de seus esforços já foram gozados, ou estão em tempo de satisfação.

É aqui que o romancista assume a indignação humana, ao apresentar a condição dos pais que sobrevivem aos filhos. Mas, apenas sobrevivem. É estarrecedor receber o filho morto, é paradoxal e antinatural. Os pais, por força da lei que impõe prazo máximo para a duração da vida do corpo, não poderiam ver seus filhos morrerem. Filho sepulta pai, não o contrário.

Dostoiévski escreve, em Os Irmãos Karamazóvi, sobre esse tema, não como quem fez laboratório, analisando à distância a dor de outros; ele viveu essa realidade e, talvez por isso, em suas obras, com freqüência, encontra-se um pai órfão de filho. Sim, porque o pai enlutado é a mais frágil das criaturas no universo dostoievskiano, ninguém é mais esmigalhado que ele. O órfão é ele. É Assim que ele se expressa: “Há no povo uma dor silenciosa e paciente; entra em si mesma e se cala. Mas há uma dor que explode: manifesta-se por lágrimas e se expande em lamentações, sobretudo entre as mulheres. Não é mais ligeira que a dor silenciosa. As lamentações só se acalmam roendo e dilacerando o coração. Semelhante dor não quer consolações, repastam-se com a idéia de ser inextinguível. As lamentações são apenas a necessidade de irritar cada vez mais a ferida”.

A condição de fragilidade dos pais fica patente, na descrição dos aldeões, pais do menino que morre aos três anos. Após a morte do filho, a estrutura pessoal e conjugal se desintegra: o pai torna-se alcoolista; a mãe, deprimida, recorre ao monge, com fama de santidade, em busca de orientação, depois de ter desistido de tudo, do marido, dos bens, da casa, de si mesma. É ela quem faz a reflexão: “Temos de tudo, vivemos por nossa conta, tudo nos pertence. Mas de que servem agora todos esses bens?”.

A dificuldade de lidar com o drama da morte faz com que esse evento divida a cronologia histórica dos pais. Antes do evento, a vida e a forma de viver era uma, depois dele, outra.

O casal, da ficção, Ignátieva e Gregório Vasslíevitch Kutúzov, com o filho enterraram a capacidade de dialogar acerca de suas angústias; sendo que esse era o sentimento que os dominava e, que, por sua condição de pais, compartilhavam; o casal emudeceu. Ela fechou-se no choro clandestino e nos lamentos sussurrados a estranhos, ele refugiou-se em um misto de misticismo fundamentalista e superstição; nunca um buscou refúgio no outro, como se imaginando cúmplices por haverem trazido à vida um ser que não sobreviveu.
“A vinda ao mundo e a morte de seu filhinho deixou em sua alma, como o disse ele uma vez mais tarde, uma marca”.

Dos casos de morte de filhos,nenhum é tão rico em detalhes quanto o do menino Iliúcha. A narrativa vai desde o incidente em que o pai do menino foi humilhado publicamente por Dimítri Karamazov; depois do que Iliúcha cultivará uma revolta interior e ódio tão grandioso por Dimítri que o levará à fraqueza, doença e morte. Não que os conteúdos afetivos isoladamente tenham-no levado ao óbito; uma conflagração de agentes internos aliados à condição de pobreza extrema fez com que ele não sobrevivesse. A mãe de Iliúcha é personagem secundário neste drama. Desequilibrada mentalmente, ela nem percebe a vida do filho escapando-lhe dia-a-dia; mesmo no velório parece estar alheia à tragicidade do evento.

Em outro extremo se encontra o pai, totalmente desvairado pela dor, que, recompõe palavra por palavra do filho e, em minúcias, atende os últimos desejos deste, a ponto de interromper o cortejo fúnebre para buscar uma fatia de pão a fim de esmigalhar sobre a sepultura do menino, para que os passarinhos vindo alimentar-se façam companhia e cantem para Iliúcha.

Snieguiriov é destruído com a morte do filho, como um louco vai e volta ao cemitério, se joga na neve, rola aos prantos, emprega linguagem desconexa. O mundo, para ele, sai de seu eixo. Todos previram que esta seria a reação dele. No início da doença do menino os seus amigos já haviam advertido: “Sabes? Perderá a razão se Iliúcha morrer (…) ficará louco ou se enforcará”. E, mesmo Iliúcha, moribundo, pede aos amigos: “Papai chorará, fiquem com ele”.

“A desgraça alheia não pode ser compreendida”. Abismo de sofrimento pela morte de um filho, só compreende quem viveu. Porém, é notório que, qualquer que seja a dor do outro, cansa aos que com ele convivem. São pacientes por algum tempo, mas, às vezes, nem dão ouvidos a “Raquel chorando seus filhos sem poder ser consolada, porque seus filhos não mais existem”.

Este o atestado, feito por Dostoiévski, em Os Irmãos Karamázovi está presente, também, na novela Angústia, de Anton Tchecov, na qual, o personagem central é o pai de um menino falecido há pouco. Este exerce a profissão de cocheiro e, a cada novo passageiro, introduz a conversa sobre a morte prematura do filho; mas, ninguém quer escutar; por fim extenuado pelo esforço de buscar ouvinte que lhe seja solidário, põe-se ao lado do cavalo, que puxa o coche e, a ele fala de sua dor, chora e encontra um ser vivo que lhe ouça.

O autor parece suspeitar da capacidade humana de se solidarizar com a dor, incessante, do outro.

A Teologia de Dostoiévski o faz crer na imortalidade da alma, por isso, no final da obra, Aliocha afirma referindo-se ao pequeno morto: “Nos encontraremos!”
_____________________
Sonia Sirtoli Färber
Teóloga. Tanatóloga.
Professora da Faculdade Missioneira do Paraná – FAMIPAR
clafarber@uol.com.br
www.famipar.edu.br
www.tanatologia.zip.net