A morte na UTI – Evaldo D´Assumpção

A MORTE NA UTI

Recentemente recebi correspondência de uma senhora narrando seu sofrimento durante a internação de sua mãe numa UTI. Depois de alguns dias de expectativa, foi informada de que a enferma estava em seus momentos finais. Levando em conta que sua mãe lhe havia pedido anteriormente que nunca a deixasse morrer sozinha, insistiu junto ao pessoal da UTI para ficar junto dela. Depois de muita insistência, permitiram-lhe ficar ali por alguns momentos, fora do horário de visitas. Solicitada a deixar o local, foi informada da morte de sua mãe ocorrida 30 minutos depois de sua saída. O que lhe deixou extremamente amargurada.

Diante desse fato – que reproduz milhares de outros iguais – acredito ser imperioso e urgente, que se estabeleçam normas bem claras a respeito de situações como essa.

A vida de cada ser humano lhe pertence. Ninguém, por maior que seja a sua autoridade ou sapiência, tem o direito de decidir pela vida ou sobre a vida de alguém. Seja ele quem for.

A única exceção se faz quando, por total incapacidade de decidir alguma coisa, alguém deva receber os cuidados que o princípio básico de “beneficência e não-maleficência” determinarem, sem que seja consultado. Por razões óbvias.

Se o princípio da autonomia é básico para a Bioética, não será a ciência e a tecnologia que deverão se impor sobre a vontade da pessoa humana, lúcida e capaz.

Partindo dessa premissa, chegamos ao questionamento crucial sobre o direito do paciente terminal ter ou não a presença de familiar – ou familiares – junto a si, em seus momentos finais.

Direito esse que nunca é discutido se o enfermo se encontra fora das muralhas das UTIs. A questão se prende exatamente na situação em que a pessoa que está morrendo se encontra sob as rígidas normas dos centros de tratamento intensivo.

Sob a alegação de necessidades técnicas, essas unidades criam barreiras enormes, difíceis de serem vencidas pelos próprios médicos não intensivistas de plantão, que buscam visitar enfermos ali internados, e totalmente impossíveis de serem superadas por meros familiares leigos.

O enfermo se torna uma propriedade particular de uma super-equipe que se julga toda-poderosa, semi-deuses que protegidos por uma armadura tecnológica ditam normas muito acima do simples direito de ser gente, dos enfermos que ali estão.

Alguns enfermos, que saem com vida, costumam dizer maravilhas de tais unidades, pois ali conseguiram recuperar a saúde perdida. Não são muitos, pois a maioria agradecida pela vida restaurada, traz recordações nem sempre agradáveis do tempo que ali ficaram. Não se manifestam claramente, tolhidos pela gratidão. Mas em suas recordações ficam marcas das quais preferem não comentar.

Mas, e aqueles que terminam suas vidas nas cabines indevassáveis das UTIs?

Talvez a incredulidade em valores espirituais e religiosos, e até em valores psicológicos, faz com que os defensores das UTIs digam que nada pode ser diferente. Outros vão mais longe dizendo que seu compromisso é com a vida do enfermo e não com questões de familiares.

Os traumas deixados naqueles que foram impedidos de estar ao lado de seu ente querido, no momento mais importante de nossa trajetória nesse mundo material, nada significam para os que estão habituados a salvar vidas em atos heróicos, em manobras sofisticadas.

Salvar vidas, esse é o credo, a filosofia, a força mobilizadora, a lei.

Dar qualidade de vida, esse é o pensamento fantasioso, a ilusão, o desperdício.

No entanto, os tempos estão mudando. Os pedestais, a cada dia se corroem mais. Os tribunais funcionam como faca de dois gumes. Enquanto amedrontam o não fazer tudo, aos poucos vão questionando o fazer demais. A obstinação terapêutica recebe duras críticas. O isolamento da família provoca a revolta e as dúvidas quanto ao que foi feito e por que foi feito.

Há que se abrir os corações, tanto quanto foram abertas as mentes.

A bioética não veio para legitimar o salvamento indiscriminado de vidas nem a obstinação terapêutica, mas para zelar pela qualidade de vida, no tempo de vida que ainda se tiver.

As portas das UTIs precisam ser abertas. Regulamentadas, sem dúvida. Porém muito mais abertas do que as pequenas frestas que hoje deixam aparecer.

Há que se enxergar o enfermo como um ser humano. Tal e qual somos nós, os médicos, seres humanos. Mesmo quando nos esquecemos de nossa humanidade.

Ciência e tecnologia só se justificam se estiverem a serviço da dignidade da pessoa humana. Do contrário serão pura escravidão e tortura.

A morte é o grande momento de nossa vida. Por mais que abominemos essa idéia.

Na morte, completamos a vida. Não existe viagem sem chegada. Não existe curso sem formatura. Não existe caminho sem destino. Não existe vida, sem morte. Como não existe morte sem vida.

Valorizamos a vida. Mas nos esquecemos de aceitar a morte. Porque a tememos. Porque não a controlamos, como acreditamos controlar a vida. Nossa prepotência se curva, se desfaz, se torna pó diante da realidade da morte. Por isso queremos desqualificá-la, ignorá-la.

É preciso resgatar esse momento que negamos. E permitir que ele aconteça com o máximo de conforto, respeito e dignidade para o ser humano.

A mão, ainda que trêmula, de quem amamos é o melhor passaporte para a outra vida. Não neguemos esse direito a quem está morrendo. Resgatemos a nossa humanidade!

Evaldo A. D´Assumpção

Cirurgião Plástico, Biotanatólogo, ex-Professor de ética da PUC-MG