A primeira noite de um homem – João Timponi (crônica)

A PRIMEIRA NOITE DE UM HOMEM

João Timponi

Vai crescendo lentamente em minhas entranhas um desabrochar murcho, horror maravilhoso. Tenho liberdade como prenda e castigo. Desamparo caminhando de mãos dadas com coragem. Volto ao passado para disparar contra mim mesmo a repetição incômoda de sentimentos de culpa, mágoa, raiva e fracasso. Quando a conheci, eu tinha dezoito e ela estava a um passo dos dezessete… ficamos amigos, depois namoramos, nos casamos e quase chegamos a fazer bodas de prata. Saí de casa uma semana antes. E aqui estou, numa cama desconhecida, voltando a um ponto de partida que não conheço, não prestei atenção quando era só.

Começar de novo… mais uma morte na minha vida e a torcida por um possível renascimento. Em seguida, percorro por uma trilha incerta em direção ao futuro, viagem estéril que só faz crescer as ervas daninhas da ansiedade, da preocupação, do medo de não conseguir.
Uma treva medonha comprime o meu coração medroso. Na véspera, tinha consultado o oráculo das Runas e saí com a runa em branco, a pedra da fé e da entrega, cuja imagem corresponde à do guerreiro que pula no precipício com as mãos vazias. Pulei. Estou em pleno ar e evitar a queda é impossível. Esqueci da asa.

Vem até minha cabeça a lembrança da postura do guerreiro que o bruxo Don Juan tenta explicar para o seu aprendiz, Carlos Castañeda; um guerreiro nunca se lamenta nem deseja, está no lugar onde deveria estar. Chega! Prometi a mim mesmo que se publicasse meus ensaios, não iria aborrecer a ninguém contando uma história tão igual a tantas outras. Não sou poeta. Este sim, sabe garimpar a miséria do cotidiano e dela extrair ouro puro.

Minha história é só minha, só tem importância para mim. Do ponto de vista de um qualquer, é banal, coletiva. Disse coisas que todo mundo diz: “Eu te amo”. “Nunca senti isso em toda a minha vida”. “Jamais te esquecerei”. “Você é a mulher da minha vida”. E, no entanto, cada palavra, cada gesto, cada lágrima, possuía para mim uma estranha singularidade, era como se o universo inteiro escutasse minha voz… mas isso também faz parte da banalidade do amor, achar que seu romance é único, especial, o maior e mais bonito. Consolo-me com a idéia holística de que todos os acontecimentos do universo estão interligados; um evento, por menor que seja, altera todo o cosmos. Quem sabe não é assim mesmo? Talvez o mundo inteiro fique diferente quando alguém fala de amor. Num relance, a fusão entre o todo e a parte, entre individual e coletivo…

E de repente, um morto ressuscita dentro de mim; mais uma vez tomo consciência de mim mesmo. É a ave que renasce das cinzas, gritando que o segredo do infinito e da vida está no presente. Mestres do mundo inteiro repetem o mesmo mantra: quem não constrói sua choupana no presente, não está vivendo, está perdendo o melhor da festa. Caminhar passo a passo, sem saber onde vai pousar o seu calcanhar no momento seguinte, esta é a única trilha. Coisa difícil de fazer, para mim ainda um sonho.

“Está tudo certo”, repito para mim mesmo. “Diz a canção que o melhor lugar do mundo é “aqui e agora”. E eu não poderia estar em outro lugar. Estou onde estou e pronto! Por uma fração de segundo, sinto a benção de nada desejar, apenas ficar comigo. Entro em contato com minha respiração, sentindo o ar passeando no meu interior e digo para mim mesmo: “Eu comigo aqui e agora”. Pratico isso há anos e ainda não consigo evitar que minha cabeça embarque nesta dança inútil do tempo-espaço. “Paciência”, converso com meus botões, “você tem o resto da vida para aprender”.

Com minha mente pousada no presente, volto a sentir o milagre de estar vivo. Para ser, basta estar respirando e ter consciência disso. E fazer consultas intermináveis ao coração, este estranho vizinho dos pulmões. Agradeço ao Criador ter-me dado a vida que tenho e começo a recitar a Oração de São Francisco, minha velha companheira, da qual sei de cor apenas as primeiras e as últimas palavras: “Senhor, fazei de mim um instrumento de vossa paz, onde houver isso, que eu leve aquilo, é dando que se recebe, é morrendo que se vive para a vida eterna, amém”.

Finalmente acolho e aceito o meu ser, meu sofrimento, minha nova cama e meu destino, começo a relaxar e sou tragado pelo mundo dos sonhos. Consigo, então, atravessar minha primeira noite como recém-separado, num barulhento três quartos que sofria de insuficiência de armários, dentre outros males.

Crônica extraída do livro “Pano de Prato: crônicas de um homem separado”, Editora Catedral das Letras.

TIMPONI, João. Pano de Prato: crônicas de um homem separado. Petrópolis, RJ: Catedral das Letras, 2006.