UM OLHAR FENOMENOLÓGICO SOBRE A MORTE NA SOCIEDADE OCIDENTAL :TESTEMUNHO HISTÓRICO-ANTROPOLÓGICO
Marta Klumb Oliveira Rabelo
Resumo: Lançar um olhar para a história da morte no Ocidente possibilita a compreensão das relações dos seres humanos com este fenômeno a partir de seu embricamento com um paradigma científico ou religioso. Este percurso busca entender como o homem do “agora”, o homem que se con-funde com o tecido cultural deste tempo de viver rechaçou a morte da sua presença, a excluiu do olhar, lançou-a na lógica do silêncio, do feio, do inominável. O mundo racionalista, de certo modo, contribuiu para que o binômio ser humano-morte se excluíssem mutuamente.
Palavras-Chave: morte, contexto histórico-Antropológico, fenomenologia.
Abstract: Viewing death history in the west allows the human relation with this phenomenon to be understood relative to religious or scientific paradigms. This approach aims to clarify how present-day man, inserted into the cultural framework of this life time, rebuffs the death of his being, avoiding to see it, having launched it into the logic of silence, the ugly, the unnamed. A rational world, in some way, contributes to the mutual exclusion of the dual death-human being.
Key-word: death, Anthropological-historical setting, phenomenology.
Introdução
“ Nada pode fazer com que sejamos o passado: é
apenas um espetáculo postado diante de nós e
que precisamos interrogar.”
Merleau-Ponty (1960/1975, p. 119-120)
Neste artigo, sublinho a idéia de que a história como tecido cultural ocupa importante papel na compreensão da expressão do ser-no-mundo diante do fenômeno da morte. A partir de um recorte teórico que perscruta da era cristã até os dias atuais busco identificar os diversos sentidos assumidos pelo ser humano diante da morte. Não tomo como verdade, porém, o fato do conhecimento histórico assentar-se nos moldes dualistas e produzir um entendimento puramente objetivo da realidade, mas entendo que caracteriza-se por um distanciamento entre o que se pensa que ocorreu hoje e o que realmente ocorreu, pois toda interpretação deixa resíduos segundo Merleau-Ponty (1975). No entanto, não se pode ignorar que a história já foi um presente vivido, mesmo que agora tenha que se “decifrar” o que foi feito. A concepção do homem subjacente à abordagem fenomenológica é a de que o homem é um ser-em-relação-com-o-mundo (Husserl, 1947/2000). É nesta perspectiva que neste estudo busco chamar o passado para que atue como testemunha do vivido e permita que o morrer se revele nas diferentes épocas e, a partir daí, contribua para o entendimento do morrer na sociedade urbana tecnológica. Uma sociedade regida pela aparência, pelo individualismo e especialmente sustentada pelo culto ao belo, ao novo e ao saudável que embalam Narciso em berço esplendido. Deste modo, sua maior expressão se assenta na morte excluída e silenciada, ou seja, na ausência de um espaço subjetivo que possibilite a expressão da ausência do outro. Um “lugar” em que a negação não se imponha majestosa e altiva, forjando ações que afastam o ser humano daquela que lhe é intrínseca, a morte. Esta reflexão integra um capítulo de minha dissertação de mestrado, onde problematizei o modo como os psicólogos percebem o morrer no contexto hospitalar, sua “residência oficial” .
O tema da morte não é uma discussão que se encerra na vitrine do agora e nem tão pouco pertence a determinado campo do saber. Foram muitos os biólogos, psicólogos, historiadores, filósofos, teólogos, religiosos e antropólogos a discutirem este assunto no decorrer da história. De fato, a morte se mostra em diversos olhares. Trata-se de uma questão que atravessa a história e que se caracteriza, sobretudo, como uma pré-ocupação fundamentalmente humana. Na perspectiva organicista, ela pode ser vista como um processo natural e inevitável, ligada a uma programação genética específica para cada espécie de ser vivo em particular. O ser humano é percebido como um material orgânico e, assim sendo, possui um “prazo de validade”. Vale lembrar, entretanto, que este entendimento puramente biológico sobre a morte não parece ser suficiente para o ser humano que busca compreendê-la a partir de suposições que vão aquém e além da sua dimensão física.
O testemunho histórico-antropológico
Tomo as sociedades ocidentais como base histórica contextual neste estudo sobre a morte. Esta escolha deriva da compreensão de que, nestas sociedades, por serem mais dinâmicas e instáveis, principalmente após o advento da Modernidade, a morte aparece revestida por diferentes sentidos que podem ser referência, em nossos dias, para se compreender a experiência humana com a morte. As experiências vividas historicamente diante da morte permitem a configuração do sentido que este fenômeno assumiu em diversos momentos da história, e, por meio de sua expressão, sua linguagem e seus atos, revelam-se atuantes e presentes na relação com a morte hoje. Assim, é relevante que se proceda a uma síntese histórica da relação do ser humano com a finitude neste contexto ocidental.
O historiador Philippe Ariès (1975/2003) dedicou-se a essa questão. Em seu trabalho, expõe a morte e o modo como foi vivenciada pelo homem em cada época, a partir do resgate e da análise de documentos históricos, inclusive de imagens iconográficas. Antes de iniciar a trajetória histórica cunhada nos estudos de Ariès (1975/2003), chamo atenção para a crítica feita por Elias (1982) à visão romântica do historiador na interpretação dos dados históricos, especialmente, quando infere ter havido um tempo em que a relação do ser humano com a morte era calma e revestida de serenidade.
De acordo com aquele autor, houve um longo período na história, por ele chamado de sincrônico, no qual as mudanças no modo como a morte era percebida ocorriam muito lentamente e eram quase imperceptíveis. A vivência da morte se dava em âmbito familiar, por isso a nomeou de: “morte domada”. Acreditava-se no destino coletivo e aceitava-se a ordem natural das coisas, pois a socialização não separava o homem da natureza. A morte era uma cerimônia pública, um momento máximo de convívio social, um ritual compartilhado por todos da casa, inclusive as crianças. Aceitava-se a morte como natural ao ser humano. O mundo dos vivos estava ligado ao dos mortos e aos mosteiros cabia o papel de interceder junto ao “além” em favor da sociedade terrestre. Desta forma, a morte era encarada com tranqüilidade e resignação.
Em contrapartida, Elias (1982) pontua a presença do tormento e da angústia como algo que sempre permeou a relação do ser humano com a morte, pois está implicada na consciência da morte. Deste modo, levando em consideração a literatura popular, expressa nas poesias da época, revela que, na Idade Média, se falava mais abertamente sobre a morte e isto oportunizava uma morte menos oculta, mais familiar, o que não significava tranqüila e isenta de angústia conforme Ariès afirmava. Uma outra questão importante, que Ariès pouco trata, é o medo do inferno que a Igreja fomentava. Construía-se no imaginário dos viventes da época a idéia de demônios conduzindo as almas para os horrores do inferno ou de anjos levando-as ao paraíso. Cabe lembrar que a vida na sociedade medieval era mais breve e as ameaças à vida, menos controláveis. A culpa e o medo do castigo eram recorrentes.
Por sua vez, Huizinga (1924/1978), em seus estudos, ressaltou o papel decisivo que as ordens mendicantes tiveram na difusão de uma nova espiritualidade e compreensão da morte a partir da interpretação do significado do termo “além”, no século XII, aproximadamente. É importante indicar que a atitude do ser humano diante da morte se expressava por meio das crenças que cultivavam em relação ao além. Segundo o autor, os pregadores franciscanos e dominicanos da época insistiam em confrontar os fiéis com a efemeridade da vida na terra e a necessidade do desapego material. Para tanto, valiam-se do cadáver putrefato, imagem preferida utilizada por eles nos sermões, quando começaram a associar, com relativa freqüência, a carne ao pó e aos vermes. Nesse aspecto, a contundente mensagem que o filósofo Ramon Llull (conforme citado por Costa, 2004) ensinava a seu filho a respeito da morte era muito próxima da espiritualidade franciscana e evidenciava um certo desprezo pelo corpo morto e pela luxúria: “Filho, cogita na morte para que não sejas orgulhoso, pois a morte inclina o corpo a grande vileza, tornando-o impotente, e coloca-o sob a terra, fazendo-o comida de vermes e horrível de se ver, tocar e cheirar, tornando-o pó e cinza.” O século XII, refletiu, portanto, o início do sentido de dramaticidade e pessoalidade ligado à morte. Estas mudanças foram se configurando ao longo da história, segundo o referido autor, a partir da observação de quatro questões fundamentais: a compreensão do dia do juízo final, o interesse pelos temas macabros e pelos corpos em decomposição e, por fim, a personificação das sepulturas.
No século XIII, embora a morte ainda se apresentasse como relativamente familiar e cotidiana, começava a sugerir uma relação de fracasso do morto diante da vida e, por isso, tornou-se comovente e passível de pena. Naquela época, o rosto do morto passou a ser oculto aos olhares. Cobriam-lhe a face com um tecido indicando o óbito (Ariès, 1975/ 2003). Este gesto é, ainda hoje, mantido pela sociedade ocidental. Um gesto que substitui palavras, um gesto impregnado de sentido.
Em seguida, vivenciou-se um período marcado por mudanças na atitude diante da morte, quando o foco centrou-se na morte de cada um em particular. Cada um deveria buscar sua própria salvação no além, lembrando que seria julgado após a morte do corpo por suas ações individuais. De acordo com Ariès (1975/2003), o dia do juízo final, que em um primeiro momento da história cristã equivalia ao fim dos tempos, passou a ser visto como o dia do fim de cada vida em particular, no momento exato da morte. Compreensões como esta, por exemplo, revelaram pequenas transformações sociais e se constituíram em indicadores da insipiente mudança de atitude diante da morte. Nesse período, o olhar começava a voltar-se para “a morte de si mesmo”.
No século XV, o ser humano do início da Idade Moderna confirmava sua impotência diante da destruição física, da morte. Aqui, ainda, observo o que Ariès (1975/2003) conceituou de “sentimento de melancolia” diante da morte. Neste sentido, Baudrillard (1996) apresenta importante contribuição quando chama atenção para o enfraquecimento do poder da Igreja que outrora se afirmava na intermediação entre o ser humano e o além. Assim, impôs-se uma “economia política da salvação pessoal”, ou seja, uma relação individual de cada um com Deus. O reino dos céus passou a ser uma conquista individual, onde seriam julgadas a fé, as obras e as perfeições. A morte solitária e excluída tornava-se presente. Com o surgimento do racionalismo, este poder ficou ameaçado, na medida em que a Igreja sobrevivia do imaginário da imortalidade. As religiões abarcam tais suposições sobre a morte e para muitos se constituem em um modo possível de enfrentamento psíquico diante de certas patologias que desnudam a finitude. Morin (1950/1970, p.194) em uma assertiva provocativa , referindo-se ao cristianismo, pontua que Deus nasce e vive da noção de morte: “a religião é determinada unicamente pela morte. Cristo irradia em torno da morte, só existe para e pela morte, trás consigo a morte e vive da morte”.
Desse modo, a racionalidade insipiente contribuiu de maneira contundente para a exclusão social da morte. Efetivou-se então, nessa época, a discriminação dos mortos. “Estar morto é uma anomalia inconcebível. (…) A morte é uma delinqüência, um desvio incurável. Nada de lugar, nem de espaço/tempo destinados aos mortos, seu lugar é inencontrável.” (Baudrillard, 1996, p.173)
Os séculos XVI e XVII foram marcados por fantasias sobre a morte reveladas na arte e na literatura. Este deslocamento da morte para o imaginário ocorre ao mesmo tempo em que o corpo morto é motivo de curiosidade científica. “É difícil separar a ciência fria, a arte sublimada (o nu casto) e a morbidez” (Ariès, 1975/2003, p. 148). Na arte e na literatura a morte era representada de modo erótico ou como uma exaltação do sofrimento e do suplício. Era comparada, também, ao ato sexual, no que tange à ruptura, à transgressão. O homem era arrancado de sua vida cotidiana e racional.
Então, percebeu que não podia controlar a morte, apesar da euforia vivida pela perspectiva racionalista, cujos alicerces eram a predição e o controle.
A partir do século XVIII, a morte se acopla com o ideário romântico e passa a ter uma preocupação central com o outro. Trata-se da morte exaltada, do desejo de “morrer de amor”, do inconformismo com a morte do outro, da morte que deixava saudades e lembranças carregadas de emoções. Cumpre lembrar que o romantismo constituía-se em uma tendência filosófica que dominou muitas áreas de pensamento e criação artística de meados do século XVIII a meados do XIX e, certamente, contribuiu de modo efetivo com a maneira como era percebida, a morte, na época. Propôs-se a descortinar o misterioso, o irracional e o imaginativo na vida humana, assim como explorar domínios desconhecidos para libertar a fantasia e a emoção, reencontrar a natureza e o passado. Destacaram-se as mudanças no âmbito sociocultural e nas ciências, que contribuíram para o fortalecimento do individualismo: a afirmação dos direitos do ser humano e o desenvolvimento da burguesia. A visão do ser humano sobre a morte acompanhou esta perspectiva social e se estruturou. Neste contexto, surgiu o medo da morte que se expressava principalmente nos desejos de algumas pessoas, revelados em testamentos, de serem enterradas somente dois dias depois da morte. Tratava-se do medo de serem enterrados vivos. Data dessa época o início da diminuição da representação da morte no cotidiano. As imagens da morte tornaram-se cada vez mais raras e o silêncio em torno dela cada vez mais gritante.
Na medida em que as sociedades se industrializavam, a morte se afastava cada vez mais da cotidianidade, tratando-se da “morte interditada” sobre a qual debruço-me com vigor nesse trabalho. No século XIX, a morte tornou-se, efetivamente, objeto de interdição, representando um evento marcado pela emoção explícita, choros, súplicas e gesticulações. A expressão de dor dos sobreviventes deveu-se à intolerância com a separação (Ariès, 1975/2003) e a compreensão da morte como algo inusitado e sempre inesperado. Inicia-se, naquele momento histórico, o jogo de esconde-esconde. Em um primeiro momento, escondia-se do enfermo a morte iminente, em seguida, escondia-se a morte da sociedade, retirando-a do cerne familiar e lançando-a no interior dos hospitais. O fenômeno deixa de ser compreendido na perspectiva da religiosidade e torna-se laico.
Esse processo de ruptura com a ordem transcendental ocorreu, de modo mais efetivo, na virada do século XIX para o século XX e, mais fortemente, na primeira metade do século XX, ocasionando a “morte de Deus” (Nietzsche, 1883/1994). A ciência separou a morte de qualquer apelo ao sobrenatural. Embora a religião ainda se afirmasse como um fator de mobilização do povo, as elites modernas viraram as costas para o deus cristão e passaram a crer no deus logos. Abre-se aqui uma possibilidade de análise da morte a partir das diferenças entre as classes sociais emergentes na época. Este fato que outrora não era tão significativo tornou-se relevante.
Nas ciências naturais, as publicações dos trabalhos científicos sobre a origem das espécies, de Charles Darwin (1859/2004), causaram um abalo nas crenças religiosas da elite pensante. As descobertas dos bacilos e micróbios por Pasteur, na França, em 1863, e as descobertas de Koch na Alemanha, em 1882 (conforme citados por Stanier, R.V.; Doudoroff, M. & Adelber, E.; 1969), também endossaram a separação de religião e ciência no campo do conhecimento. A verdade que se revelava é que eram os microorganismos os responsáveis pelos processos de putrefação e das doenças, como tifo e tuberculose, que assombravam as pessoas daquele tempo, e não o desejo de um Ser Supremo de punir os pecadores. Este era um fato irrefutável no pensamento positivista que, de imediato, agregou adeptos.
Feuerbach (1841/1997), por sua vez, já havia publicado “A essência do cristianismo”, onde assegurava ser Deus uma projeção dos desejos de perfeição do ser humano. Afirmava que as pessoas viviam em meio à infelicidade e à insegurança do sentimento de morte e, assim, idealizavam um reino perfeito nos céus, onde seriam eternamente felizes e imortais. Desse modo, quando Nietzsche (1883/1994) anunciou que Deus estava morto, em “Assim falou Zaratustra”, descortinou o que já vinha sendo feito no terreno das ciências naturais e sociais há algum tempo. Consolida-se a era do culto ao indivíduo, do narcisismo que assolou o ser humano a partir do redirecionamento da crença em Deus para o próprio eu, cada um podendo tornar-se seu próprio deus. Freud (1929/1996), em “O mal-estar da civilização”, ao referir-se à tentativa narcísica do homem moderno de enfrentar o abandono e lidar com o mal-estar por meio de uma divinização de sua condição humana, adverte, quase que profeticamente, no mesmo texto: “Tempos futuros trarão novos e talvez inconcebíveis progressos neste terreno da cultura, exaltando ainda mais, a deificação do homem. Mas não esqueçamos, no interesse do nosso estudo (o mal-estar) que tampouco o homem de hoje se sente feliz na sua semelhança com Deus”. Efetiva-se a substituição de Deus pela razão e pela ciência. A relação do homem com a morte passa a ser intermediada pela razão e não mais pela revelação.
A morte nas fronteiras do “agora”
À s portas do século XX, a morte se afirma no seio da sociedade como um “tabu” e aloja-se no hospital. Nas palavras de Freud (1912/1996, p 37):
“ Tabu é um termo polinésio. (…) O significado de ‘tabu’, como vemos, diverge em dois sentidos contrários. Para nós significa, por um lado, ‘sagrado’, ‘consagrado’, e, por outro, ‘misterioso’, ‘perigoso’, ‘proibido’, ‘impuro’. O inverso de ‘tabu’ em polinésio é ‘noa’, que significa ‘comum’ ou ‘geralmente acessível’. Assim, ‘tabu’ traz em si um sentido de algo inabordável, sendo principalmente expresso em proibições e restrições.”
Este conceito antropológico, interpretado à luz da psicanálise por Freud, corrobora com as pesquisas do historiador Ariès (1975/2003), ao explicar que este deslocamento ocorre porque já não há mais um lugar social que possibilite a expressão de dor diante da morte. As manifestações de sofrimento são muitas vezes gestos solitários, escondidos ou reprimidos.
Os rituais de sepultamento tornam-se cada vez mais curtos e inicia-se a substituição do enterro do corpo pela cremação em alguns grupos sociais. Este fato torna ainda mais rápido o “desaparecimento” da morte ou a possibilidade desconfortável de ver cemitérios na paisagem urbana que tanto pretende refletir a alegria e encantamento de uma sociedade de consumo narcísica, feliz, saudável e bela. Todos os demais elementos, excedentes desta sociedade asséptica, foram varridos para debaixo do tapete, ou seja, o feio, o diferente, o doente e a morte, dentre outros, não têm mais lugar neste mundo da vida. A este respeito, Certeau (2000, p.293-294) afirma:
Os moribundos são proscritos porque são os desviantes da instituição por e para a conservação da vida. Um luto antecipado, fenômeno de rejeição institucional, os coloca de antemão na câmara da morte. Envolve-os de silêncio ou, pior ainda, de mentiras que protegem os vivos contra a voz que poderia quebrar essa clausura para gritar: “estou morrendo!”. Este grito produziria uma morte de aborrecedora deselegância. A mentira (“não, o doente vai melhorar!”) é uma garantia contra a comunicação. Pois a palavra proibida, caso se fizesse ouvir, trairia a luta que mobiliza o hospital e que, supondo que cuidar quer dizer curar, não quer saber do fracasso: seria uma blasfêmia.
Assim, a morte passa a ocorrer no meio urbano encerrada na assepsia dos hospitais, muitas vezes, longe da presença da família. Torna-se refém do hospital; o enfermo torna-se refém do médico e o médico, por sua vez, torna-se refém da tecnologia e do contexto político-administrativo do hospital. Pode-se acrescentar aqui o modo como se pronuncia Ariès (1975/2003, p.86):
A morte é um fenômeno técnico causada pela parada dos cuidados, ou seja, de maneira mais ou menos declarada por decisão do médico (…) a morte foi dividida, parcelada numa série de pequenas etapas dentre as quais, definitivamente, não se sabe qual a verdadeira morte, aquela em que se perdeu a consciência ou aquela em que se perdeu a respiração…
Sinto-me impelida a voltar-me para o pensamento Heideggeriano (1927/2000) por sua compreensão acerca do ser ontológico, do ser-para-morte, no qual estamos prontos para morrer desde nosso nascimento e quando afirma, ainda, que é na morte que o ser humano tem seu mais autêntico e significante momento, sua potencialidade pessoal, na qual, sozinho, deve padecer. Portanto, se tomar a morte em sua vida, admitindo-a e enfrentando-a francamente, libertar-se-á da ansiedade da morte e da insignificância da vida e, somente então, estará livre para se tornar sí mesmo. Em ambos os casos, é possível que a angústia se faça presença e aí é importante compreender o sentido do termo “angústia” não só por meio do conceito de repressão psicanalítica, mas também como um modo criativo de viver a dor existencial.
Considerações finais
O ser humano não pode, por mais conhecimento técnico e teórico que disponha, dominar a irreversibilidade da finitude, mas seria interessante aprender a conviver com ela. Este confronto com os limites humanos se expressa, muitas vezes, na peculiar sensação de fracasso humano. A partir do avanço tecnológico na área de saúde, percebo uma convivência com a presença da morte por mais tempo, posto que a ciência possibilita a prorrogação da vida, a despeito da qualidade de vida muitas vezes duvidosa de alguns procedimentos hospitalares . Este fato recomenda que, eu trate, na contemporaneidade, do “morrer”, ou seja, da morte como processo e não como fenômeno absoluto. O olhar para o morrer se aproxima ainda mais da possibilidade existencial na qual estamos sempre morrendo, a cada instante, em cada gesto, em cada despertar.
Com esta breve incursão na história, espero ter evidenciado a prevalência ora de uma experiência de morte ligada ao discurso religioso, ora ao discurso científico hegemônicos. A relação do ser humano com a morte, portanto, esteve impregnada em um tecido cultural , cuja interação com o conhecimento prevalente fornecia os subsídios importantes para compreensão das atitudes advindas do senso comum sobre a morte. Entender o ser humano a partir de suas experiências diante da morte, mais do que um saber-se mortal, é importante na medida em que compõe uma espécie de memória coletiva.
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TITULO – Um olhar fenomenológico sobre a morte na sociedade ocidental: Testemunho histórico-antropológico
REFERENCIA BIBLIOGRAFICA –
RABELO, M. K. O. Um olhar fenomenológico sobre a morte na sociedade ocidental:Testemunho histórico-antropológico. Outras Palavras: Revista científica da ESPAM. Brasília,V. 3, p. 71-84, jul.2006.
AUTOR – Marta Klumb Oliveira Rabelo
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